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15 de maio de 2011

" NÓIS MUDEMO"

Ainda lembro quando meu irmão leu esse texto pela primeira vez; demos boas risadas no início mas no final do texto é como se ficássemos engasgados; um final trágico mas que acontece todos os dias em todas as escolas e infelizmente ninguém faz nada para ajudar pelo contrario o (MEC) Ministério da Educação adotou um livro que defende falar errado daqui a pouco "nois" escreve errado fala errado; e a língua portuguesa vai virar uma salada...
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O  ônibus da transbrasiliana deslizava pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional . Era abril , mês das derradeiras chuvas . No céu , uma luazona  enorme pra   namorado nenhum  botar  defeito  . Sob  o luar generoso ,   o cerrado verdejante era um presépio  ,  todo poesia    e misticismo .
     Mas minha alma estava profundamente  amargurada .   O encontro daquela tarde  ,  a visão  daquele  jovem   marcado  pelo    sofrimento , precocemente  envelhecido  ,   a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... til .  Meus olhos percorriam a paisagem enluarada  ,  mas ela nada  mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico .
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      As aulas tinham começado numa segunda-feira . Escola de perife-
ria , classes heterogêneas , retardatários .  Entre eles ,  uma criança crescida , quase um rapaz .
     - Por que você faltou esses dias todos ?
     - É que nóis mudemo onti, fessora . Nóis veio da fazenda .
     Risadinhas da turma .
     - Não se diz " nóis mudemo " menino ! A gente deve dizer : nós mudamos , tá  ?
    - Tá fessora !
    - No recreio , as chacotas dos colegas : Oi , nóis mudemo !          Até amanhã , nóis mudemo !
   No dia seguinte , a mesma coisa : risadinhas , cochichos, gozações .
   - Pai , não vô mais pra escola .
   - Oxente ! Módi quê ?
   Ouvida a história , o pai coçou a cabeça e disse :
   -  Meu fio , num deixa a escola por uma bobagem dessa . Não liga pras gozações da mininada ! Logo eles esquece .
   Não esqueceram .
   Na quarta-feira , dei pela falta do menino . Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte . Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele . Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - L-ucio Rodrigues Barbosa . Achei o endereço. Longe , um dos últimos casebres do bairro .
Fui lá , uma tarde . O rapazola tinha partido no dia anterior para cas de um tio , no sul do Pará .

    - É , professora , meu fio não aguentou as gozações da mininada . Eu tentei fazê ele continuá , mas não teve jeito . Ele tava chatiado demais . Bosta de vida ! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famia . Na cidade nóis não tem veis . Nóis fala tudo errado .
   Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi .
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   O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento , ao menos de minha parte .
 

  Uma tarde, num povoado à beira da Belém-Brasília , eu ia pegar o ônibus , quando alguém me chamou . Olhei e vi , acenando para mim , um rapaz pobremente vestido , magro , com aparência doentia .
    - O que é, moço ?
    - A  msenhora não se lembra de mim , fessora ?
    Olhei para ele , dei tratos à bola . Reconstituí mum momento meus longos anos de sacerdócio , digo de magistério . Tudo escuro .
    - Não  me l embro não , moço .   Você me conhece ? De onde ? Foi meu aluno ? Como se chama ?
    Para tantas perguntas , uma resposta lacônica :
    - Eu sou " Nóis Mudemo " , lembra ?
    Comecei a tremer .
   - Sim , moço . Agora lembro . Como era mesmo seu nome ?
   - Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa .
   - O que aconteceu ?  Ah ! fessora !   É mais fácil  dizê o  que não aconteceu .  Comi o pão que o diabo amassô .  E  êta diabo  bom de padaria ! Fui garimpeiro , fui bóia fria , um "gato" me   arrecadou e levou num caminhão  pruma  fazenda  no meio da mata .   Lá trabaiei como escravo , passei fome , fui baleado quando consegui fugi . Peguei fugi .Peguei tudo quanto é doença . Até na cadeia já fui pará . Nóis  ignorante às véis fais coisa sem querê fazê . A escola fais uma farta danada . Eu não devia de tê saído daquele jeito , fessora , mas não aguentei as gozações da turma . Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito . Ainda hoje não sei .

    - Meu Deus !
    Aquela revelação me virou do avesso . Foi demais para mim . Descontrolada comecei a soluçar convulsivamente . Como eu podia ter sido tão burra e má ? E abracei o rapaz , que me olhava atarantado .

    O ônibus buzinou com insistência .
    O rapaz afastou-me de si suavemente .
    - Chora não , fessora !  Asenhora não tem curpa .

    Como ? Eu não tenho culpa ? Deus do céu !
    Entrei no ônibus apinhado . Cem olhos eram flechas vingadoras apontadas para mim . O ônibus partiu . Pensei na minha sala de aula . Eu era uma assassina a caminho da guilhotina .
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    Hoje tenho raiva da gramática . Eu mudo , tu mudas , ele muda , nós mudamos , mudamos , mudaamoos, mudaaamooos... Super usada , mal usada , abusada , ela é uma guilhotina dentro da escola . A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas - e se torna o terror dos alunos . Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando , ela reprime e opri-
me , cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade .

   E os Lúcios da vida , os milhares de Lúcios da periferia e do interior , barrados nas salas de aula :" Não é assim que se diz , meni- no !" Como se o professor quisesse dizer : "Você está errado ! Os seus pais estão errados ! Seus irmãos e amigos estão errados ! A certa sou eu ! Imite-me ! Copie-me ! Fale como eu ! Você não seja você ! Renegue suas raízes ! Diminua-se ! Desfigure-se ! Fique no seu lugar ! Seja uma sombra !"
    E siga desarmado para o matadouro da vida ...
                                    (Fidêncio Bogo ) 

                                                                                  

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